sábado, outubro 24, 2009

Um Elogio ao Ócio



Um dos grandes problemas vividos hoje se volta para a falta de tempo enfrentada pelo homem, principalmente, devido ao que podemos chamar de "crença nas virtudes do trabalho".

Antes de entrar no mérito acerca dessas virtudes, é necessário dizer que, de modo algum, não trabalhar é o melhor caminho a ser seguido. Muito pelo contrário, o trabalho é necessário para que possamos suprir muitas de nossas necessidades. É com o dinheiro arrecadado que podemos nos alimentar, comprar vestimentas, cuidar da saúde, higiene, etc.

No entanto, é importante distinguir até que ponto o trabalho é realmente necessário e até que ponto o mesmo é apenas feito como forma de se mostrar como um ser competente. Hannah Arendt, na obra "A Condição Humana”, mencionava três atividades fundamentais do ser humano: o labor, o trabalho, a ação. A primeira se trata do processo biológico pela sobrevivência. A segunda se refere ao fazer, criar, um produto por técnica ou arte; no que os gregos chamariam de “poiesis”. A terceira se exerce entre os homens, sem mediação das coisas ou da matéria, ou seja, a própria práxis.

Observa-se hoje a tendência do mundo industrial em transformar toda a atividade em labor. Talvez através de uma estruturação de um sistema de valores que impõem o trabalho como condição essencial de dignidade, talvez com o repúdio ao ócio, sendo este tratado como, na maioria dos casos, o melhor lugar para que se produzam os vícios. Crê-se que o trabalho é bom e, ainda que você de algum modo não precise dele, deve fazê-lo, visto que o mesmo é tratado como sinônimo de honestidade, de integridade moral, de respeitabilidade. Até mesmo na seara criminal, o trabalhador é visto como um homem de bem, com grandes chances a obter os mais diversos benefícios legais que possam lhe garantir uma possibilidade de responder um processo em liberdade.

Pode-se dizer que essa mistificação do trabalho teve um dos seus ápices na reforma protestã, encadeada por Calvino, em que se consideravam salvos aqueles escolhidos por Deus e, para que se pudesse provar ser um escolhido, seria necessário seguir os princípios cristãos e, principalmente, trabalhar muito. Assim, o sucesso no trabalho é um dos sinais de que você foi escolhido para ser salvo.

Porém, sociólogos, como Weber, demonstraram que esse apego exacerbado ao trabalho, em parte, explica o precoce desenvolvimento do capitalismo em lugares onde o Calvinismo foi mais intenso, tais como Holanda e EUA. E, a partir dessa perspectiva, é que o trabalho, aqui tomado no seu sentido econômico, que visa à produção de riqueza, começa a tomar proporções extremamente desfiguradas e, em certa medida, é considerado um valor quase sublime, cujas consequências, dentre outras são as aversões ao não trabalho.

Bertrand Russel, em “O Elogio ao Ócio”, demonstra muito bem como o ócio é, em grande parte, responsável pelas evoluções sociais. Basta fazer uma linha histórica, em que os grandes pensadores vieram da classe ociosa, ainda que esse ócio se deva ao sobretrabalho dos outros.

Tendo-se em vista a disparidade entre o número de pessoas que realmente contribuíram para o progresso social e a quantidade dos que nada fizeram, é o ócio a maneira capaz de proporcionar uma vida em sociedade muito mais leve, já que é muito mais fácil encontrar a felicidade e a realização pessoal no lazer do que propriamente no trabalho. Assim, a não exaustão proveniente do trabalho combinada com uma quantidade de lazer o suficiente podem redirecionar a capacidade criadora do ser humano para a realização “de alguma atividade pública, e [...] não terão a originalidade tolhida e nem a necessidade de se amoldarem aos padrões estabelecidos pelos velhos mestres” (O Elogio ao Ócio. Bertrand Russel. Pág. 35).

Edvaldo Moita

4 comentários:

  1. É engraçado perceber que o ser humano não tira tempo para pensar na sua própria realidade e na sua condição. Não olha ao redor, não questiona e simplesmente limita-se a aceitar as ''verdades'' que lhes são impostas.

    Buscam algo, mas, no fim, percebem que tal quadro idealizado de longe, ao chegar perto, é cheio de rachaduras e falhas.

    A vida ausente de divagação e questionamento é mera vida automizada, agindo como máquinas programas e sem vontade própria.

    O mito capitalista do sucesso pessoal com o êxito financeiro é tão triste que condena milhares de pessoas a uma vida frenética com abnegação de valores familiares e sociais básicos. Foi ressaltado, de forma inteligente, que o objetivo não é uma completa negação do trabalho, mas que não haja uma deturpação do real sentido deste, que as pessoas não sejam escravas dele, mas que este seja uma mera ferramenta para a nossa vida cotidiana no sentido de emancipação pessoal, intelectual.

    A sórdida situação humana diante da falta de atenção a valores básicos é tal que num dado momento as pessoas talvez sejam forçadas a dar atenção a si para evitar que o estado de putrefação avance e evite a ruína do sistema.

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  2. Isso mesmo Evandro. Esse era outro ponto que eu queria abordar no post: a falta de criticidade com que levamos nossas vidas. Muitas vezes, fazemos muitas coisas apenas por fazer. Estudamos para passar num concurso porque é com ele que podemos ter estabilidade, mas nunca nos perguntamos se essa estabilidade é algo que realmente vale a pena. É esse desejo que temos para ser iguais a todos que acabamos caindo na mediocridade do ser previsível.

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  3. A vida moderna não lhe dá tempo de olhar para si e fazer uma auto-reflexão, coisas que muitas vezes são necessárias para se ter um vida melhor.Exige-se muita produção e não se olha o lado humano. O ócio pode ser aproveitado de diversas formas. Talvez um dos maiores produtos do ócio seja os livros de filosofia gregos, pois até onde se sabe, os filósofos não faziam nada a não ser pensar: tinham escravos para executar tarefas domésticas.Falta do que fazer, dependendo da mente, pode gerar tanto banalidades quanto obras de arte.

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  4. Obviamente, esse é o outro lado da moeda. Quando falei que existe uma "disparidade entre o número de pessoas que realmente contribuíram para o progresso social e a quantidade dos que nada fizeram", tentei, também, reportar-me ao fato de que, ainda que se tenha ócio para todos, alguns nada farão. No entanto, não tendo ócio para ninguém, muito menos seria feito!!

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